Preciso falar sobre as coisas difíceis. São várias.
Eu percebo que tô começando a afundar quando meus hábitos mudam. Começo a tomar café da manhã nas três refeições do dia, durmo mais do que o normal sabendo que tenho obrigações a cumprir e não ligo, pequenas transgressões que depois me magoam porque sei que estou me fazendo mal de propósito.
É uma espécie estranha de auto-flagelo, acho.
Ainda estou passando por uma crise com relação ao desenho. Meu senso crítico ainda me dá umas chicotadas e não consigo superar esse modo de agir. Então eu travo, seja pra fazer desenho livre, seja pra treinar qualquer coisa.
Mas vai passar. Tá passando (segundo minha mãe o ideal é sempre falar no presente, concordo com isso, por mais que eu não sinta exatamente isso).
Tem mudanças no meu comportamento, claro que tem. Agora, toda vez que faço algum desenho com muitas falhas (todas identificadas e catalogadas no hall da desgraça mental) escrevo mensagens positivas pra mim mesmo. Só que isso é meio marido que bate na mulher e depois entrega flores pra ela, sabe?
Não sei se é muito justo eu tentar maquiar todas as críticas com mensagens bonitinhas nas quais nem sei se tenho tanta fé. Ainda assim já é um pouquinho melhor.
Fugir é tão mais fácil. Sei que se eu quiser largar absolutamente tudo, entrar numa faculdade de artes, arranjar um emprego e uma vida tranquila e fácil aqui minha família toda vai aceitar e nunca questionar minhas razões... Sei que se eu quiser me largar e deixar de querer tanto e sofrer tanto por não ter energia pra ser nem o básico eles me dariam o tempo necessário até que eu me restabelecesse. Só que não posso fazer nada disso agora.
Eu só quero fugir um tempo, minha mãe diz que preciso viajar, e acho que ela está certa. Se me deixar de férias por duas semanas em casa pra relaxar, me renovar e voltar a produzir vou afundar de vez. Não posso me dar ao luxo de tirar das costas as minhas obrigações num lugar tão propenso a me fazer desistir. Preciso de novos ares.
Agora vamos pra outra pauta complicada: ser genderqueer é extremamente desgastante agora. Não consigo ser direto com a minha mãe e isso acaba comigo. Eu converso com ela sobre coisas que super tem a ver com isso, mas a abordagem não me serve... É horrível ter que conversar e ficar analisando as respostas dela cuidadosamente e pensando como ela falaria comigo se soubesse, se estivesse inteirada nessa questão.
Já cheguei a falar sobre plástica redutora, vários assuntos sobre transgêneros até coisas mais básicas como comprar o bendito calção de banho. Mas eu mesmo me saboto... ela perguntou "por que você quer comprar um calção?" e de todas as respostas possíveis fui na omissa "não quero ter que me depilar". Se fosse assim tão fácil tava bom, né? Um motivo simples desses...
Além disso vivo me perguntando se ela não acessa o blog nunca. Acho que em algum momento da vida já passei o link pra ela, mas não sei se ela chegou a guardar ou sequer lembra disso. Sei lá, me pergunto se ela já suspeita de alguma coisa, mas espera até o momento em que eu diga claramente.
É engraçado porque até quanto você sabe que vai ter 1000% de aceitação na família falar a verdade continua parecendo um monstro de quarenta cabeças.
Outra coisa que me irrita é não conseguir mudar minha voz. As vezes eu treino em casa, faço variações pra ver qual fica mais natural, mas me desespera tanto ter que falar com alguém na rua que eu acabo falando fininho. Sempre fiz isso, mesmo minha voz sendo até meio grave me sinto desconfortável falando com estranhos e aí sai a versão garotinha.
Toda vez que acontece eu me repreendo por cair na armadilha de novo e de novo.
E sabe, tudo aquilo que eu sempre falei e defendi e debati sobre representatividade literária? Bem, isso é TÃO SUPER NECESSÁRIO. Sério.
Hoje eu peguei pra retomar a leitura de Dois Garotos se Beijando e, nossa, é um dos livros mais importantes da minha vida? Sim, depois de um acumulado de horas chorando por conta de vários trechos grifados dessa obra preciosa, definitivamente é algo que vou mostrar pros meus filhos.
Nele tem o Avery, um menino perfeito, trans e tão real que me dá vontade de chorar só de repassar a personalidade dele na cabeça. Me identifiquei muito, sabe? Só que ainda tinha um espinho nessa identificação: Avery é um garoto. Sou algo entre os dois gêneros.... Pra quem eu vou olhar?
Isso dá um desespero tão grande... Parece exagero, mas é desolador sentir que não pertence a lugar nenhum.
Sabe, eu sei que estou no meio e que ele existe, é concreto. Ok, mas em quem eu me enxergo? Em que livros leio a história da minha vida e consigo respirar aquelas páginas como se fossem os dias pelos quais eu passei?
É muito difícil não ter isso pra si. Neste exato momento estou procurando livros com personagens capazes de me representar nesse quesito.
Claro, existem vários personagens com os quais já me identifico e sabe o que eles todos tem em comum? São todos homens. Dá pra entender como isso é complicado? Eu sou dois, sei disso porque por mais que as vezes cirurgia de redesignação de gênero me pareça algo promissor me preocupa pensar em não poder ser ela nunca mais...
Complicado. Tudo é extremamente complicado.
Eu tenho pressa pra tudo. É irônico porque ao mesmo tempo tenho muito muito medo de ver a vida passar e de envelhecer. Quero que chegue o dia em que vou ter a minha casa e o dia em que me sentirei a vontade com o meu corpo e com o modo como ele é lido pela sociedade, o dia em que vou fazer o que amo e não ter mais críticas a fazer sobre mim mesma... Quero tudo isso agora, não quero nem mais um segundo passando sem ter todas as angústias sanadas, as fases já passadas e as experiências já vividas. Acho que é muito medo de viver. De quebrar a cara quantas vezes for preciso (e olha, devem ser milhares, porque eu só nesse meio tempo já devo ter na conta umas centenas)... Preciso me acalmar e não ver a vida passar achando que é só perda de tempo.
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